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POR: Rodrigo Garcia Lopes
Impossível falar de contracultura sem mencionar Irwin Allen Ginsberg (1926-1997) e os melhores escritores associados à geração beat (como seus gurus, William Burroughs e Jack Kerouac, ou ainda Gary Snyder, Lawrence Ferlinghetti e Gregory Corso). Os beats foram responsáveis por fazer uma revolução nas letras e na cultura norte-americanas, com impactos até nossos dias. Com exceção da chamada language poetry (anos 1970), nenhuma outra formação poética norte-americana afetou com tanta virulência a paisagem literária desde a Segunda Guerra Mundial. Os beats tiraram a poesia dos gabinetes sisudos (onde mofavam sob o espectro de T. S. Eliot e o modernismo classicizante da “nova crítica”) e botaram-na na rua, tornando-a viva, para os vivos, novamente. Ginsberg e seus comparsas ganharam proeminência na segunda metade dos anos 1950, com obras que representavam uma reação ao formalismo então dominante nas letras. Eram tempos de conformismo, prosperidade econômica, caça aos comunistas, racismo e pobreza espiritual, representados pelo consumismo desenfreado do American Way of Life.
Podemos dizer que Allen Ginsberg é um dos poetas centrais de nosso tempo e talvez o último representante do poeta público. De um tempo em que a poesia ainda tinha algum prestígio e força cultural. Ginsberg foi um ativista pelas mais diversas causas libertárias, imerso, corajosamente, nas questões de seu tempo (a censura, a barbárie da guerra, o preconceito sexual e racial, a repressão, o etnocentrismo, a destruição do meio ambiente e, sobretudo, a liberdade de expressão). Ao contrário do que costumam afirmar seus detratores, além dos temas controversos e sua suposta verborragia, nenhuma forma fugiu à sua pena: ele escreveu poemas longos, poemas metrificados, sonetos, haikus, epigramas, baladas, canções, blues, poemas-manifesto etc. Homossexual, judeu, drogado, outsider, Ginsberg foi um catalisador ou porta-voz de anseios de oposição ou resistência cultural, bem como de padrões de comportamento e decoro poético. Com Uivo (poema-chave do século 20, cuja aventura agora ganha as telas do cinema), Ginsberg e sua poesia saíram do gabinete (literariamente) e do armário (sexualmente). “Num tempo”, explicou Ginsberg numa entrevista, “em que a profissão médica considerava a homossexualidade uma doença e era punida como um crime em muitos estados da União”, as linhas proféticas e iradas de seu livro causaram polêmica. Em 1956, o livro Howl e Outros Poemas foi processado por obscenidade. Daí para a fama instantânea foi um passo (fama a que ele remete, bem-humoradamente, em um de seus últimos poemas, “Morte e Fama”). O que estava em jogo, no entanto, era mais que uma viagem egoica ou a mera exibição de uma pose loser qualquer. Era a conexão entre linguagem e realidade. Era a própria poesia e nossa sobrevivência neste planeta. O eu que se transmuta em outros Não parece fortuito o fato de Ginsberg começar a escrever seu poema em 1955, ano em que se comemoravam os 100 anos da primeira edição de Folhas da Relva, de sua principal referência literária, Walt Whitman. Ginsberg, com seu uivo, atualiza e radicaliza a mensagem básica do “Poeta do Cosmos” em 1855: de que liberdade individual, liberdade sexual e de linguagem, liberdade política e poética tinham de andar lado a lado. A poesia não como algo restrito a poucos iniciados e sim aberta e democrática, imersa nas questões de seu tempo. O poema como um veículo para a transformação para uma “experiência de linguagem” sempre renovada. Uma poética que rompia as barreiras entre privado e público, masculino e feminino, corpo e alma, individual e coletivo. O “eu” que poderia se transmutar em outros. Tirando a poesia do gabinete e das torres góticas e atmosferas enfumaçadas, o poeta trazia a poesia para a rua, para os campos, para o espaço aberto. Apresentava seu poema não como o produto de algum gênio e sim de um homem que viu o inferno e nos brindou com sua arte verbal sobre ele. Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura,] famintos histéricos nus,] se arrastando na aurora pelas ruas do bairro negro na fissura de um pico,] hipsters de cabeça feita anjos ardendo por uma conexão celestial e ancestral com] o dínamo estrelado ancestral na maquinaria da noite,] que pobreza e farrapos e olhos ocos e loucos sentaram fumando na escuridão] sobrenatural dos apartamentos sem calefação flutuando pelos tetos das] cidades contemplando jazz (…) [Trad.: Rodrigo Garcia Lopes] Assim Ginsberg começa seu célebre poema, retomando a longa linha convulsiva e profética da poesia de Whitman e Blake em clave moderna. Um verso marcado também pelo jazz, pela “prosódia bop” da prosa de Kerouac e pelo poema “Zone”, de Apollinaire. Howl (Uivo), ao lado de On the Road, de Kerouac, foi o grito de uma geração batida (beat no triplo sentido de geração “batida”, derrotada, mas também beatificada, além da pulsação do jazz, o beat). Uma geração que queria liberdade e uma poesia colada à vida no grau máximo. A poesia de Ginsberg e dos beats ia na contramão do comodismo da “geração silenciosa” e seu bom-mocismo poético, do neoclassicismo defendido pelos novos críticos. Estes pregavam um retorno à rima, ao metro, a temas e tratamentos clássicos, esquecendo o modernismo mais radical. Contra a “impessoalidade” herdada de Eliot ou a ideia do poema como “urna bem fechada”, o poema de Ginsberg, com seu realismo espontaneísta, seu humor anarquista, sua capacidade imaginativa e oracular, era mais afeito à “pintura em ação” de Pollock ou ao sax de Charlie Parker. Dona de uma voz particularíssima, a poesia fortemente autobiográfica de Ginsberg arejou o ambiente poético ao estabelecer um diá- logo crítico-criativo com poetas como Maiakóvski e Lorca, resgatando malditos como Rimbaud, Blake, Villon, Appolinaire e o surrealismo para a poesia norte-americana. Pertence, portanto, a uma tradição de poetas que eram inovadores no plano formal e ao mesmo tempo libertários em nível existencial.
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