Todos sabemos que brasileiro se acha médico e adora se automedicar e muitas vezes sabendo dos riscos que corre com isso, mas as vezes dá preferência a indicações de amigos e conhecidos do que ir a um médico para se consultar.
O que vemos é um consumo exagerado de remédios, e pior da forma errada ou desnecessária.
Há quem se arrisque ingerindo anfetaminas e antidepressivos para emagrecer. Há cada
vez mais crianças sendo medicadas para ficarem menos agitadas*. Há quem não consiga
se livrar do vício em tranqüilizantes.
Há UTIs de ponta onde a dosagem de antibióticos dada aos pacientes é cavalar. Há pacientes com câncer que continuam sendo medicados por ordem da família.
Uma faceta do problema brasileiro de excesso de medicação veio em um relatório da Junta Internacional Fiscalizadora de Entorpecentes, ligada à ONU, mostra que o Brasil é o campeão mundial no consumo de remédios para emagrecer. Entre 2002 e 2004, a média brasileira per capita de anfetaminas foi de 9,1 doses por 1.000 habitantes - 15% a mais que nos EUA, o segundo colocado no ranking.
Esse índice brasileiro é 20% maior do que o observado de 1992 a 1994.
Esse não é um problema só do Brasil, mas um olhar mais atento ao caso brasileiro revela
problemas ainda mais profundos, como alerta o psicofarmacologista Elisaldo Carlini, do
Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas (Cebrid):
- No Brasil há uma tendência muito grande de que as mulheres sejam influenciadas a
achar que têm de ser mais magras. É uma histeria. O País já foi formalmente alertado pela
ONU, e houve um controle relativo da venda desses medicamentos até 1997. Mas,
depois, esse consumo explodiu, e foi também para o Prozac, que tem fluoxetina, um
antidepressivo também capaz de inibir o apetite.
O uso contínuo de anfetaminas leva ao aumento da pressão sanguínea, além de efeitos
psicológicos como agressividade, paranóia, compulsividade e até a esquizofrenia. No caso
de antidepressivos usados para emagrecer (como a fluoxetina), os efeitos podem ser
ainda piores.
- As conseqüências são as mais absurdas, com efeitos adversos sérios - insiste Carlini,
que também é professor da Escola Paulista de Medicina/Unifesp.
No caso dessas "fórmulas milagrosas" para emagrecer, manipuladas, é muito comum o
paciente - ou a paciente, já que 90% dos consumidores dessas fórmulas são mulheres -
já procurar o médico sabendo que ele passa esse tipo receita. E o case de uma dona de
casa baiana, de 35 anos, que começou a tomar remédio para emagrecer aos 18. Ela tem
1,60 e está com 58 quilos à base de anfetaminas e, mais recentemente, da fluoxetina:
- Tomo fórmula há 17 anos. Já na primeira vez, emagreci 12 quilos. Passei a me achar
linda, a ser elogiada, e vi que gosto de coisa fácil. Não é a melhor coisa do mundo
depender de remédio, mas tenho certeza que ser gorda ou cheinha é ainda pior.
Hoje minha luta é enganar o meu corpo. Quando ele se acostuma com uma dosagem, paro de
tomar por uns três meses, engordo, e depois ataco de novo.
Ela sempre procurou, e encontrou fácil, médicos que "passam fórmula boa". Há alguns
anos, morou na Itália e, lá, não tinha acesso aos medicamentos. Engordou, chegou a 82
quilos. Mas, assim que voltou ao Brasil, reencontrou as fórmulas:
- Descobri a fluoxetina há dois meses.
Essa é droga mesmo, tomo e me dá inspiração, gás, energia. Também dá oscilações de
humor, me acho maravilhosa, mas, quando passa o efeito, não consigo me olhar no
espelho e volto para casa correndo. Já coloquei na minha cabeça que obesidade é uma
doença de tem que ser combatida com remédio. E descobri que antidepressivo não vai
poder faltar. Acho melhor viver metade da vida intensamente do que a vida inteira
sofrendo. Não faço sacrifício nenhum.
É normal que se prefira evitar um sacrifício, não sentir dor, não ficar triste. Mas os
exageros, e seus riscos, aparecem quando a determinação de não sofrer passa a ser a
regra. O médico psiquiatra e ex-diretor da Organização Mundial da Saúde, Jorge Alberto
da Costa e Silva, considera que há um excesso de "medicalização da vida":
- Hoje, ao menor desvio de índices biológicos ou comportamentais, logo se busca a
solução em um comprimido. Há uma cultura de se medicalizar fatos da vida, é um dado
da sociedade moderna. A cada dia, por exemplo, reduz-se o Índice do peso ideal, aí a
pessoa vai para os remédios mesmo.
No campo da medicina comportamental, nos últimos quatro anos, o Brasil viu as vendas
de um remédio indicado para o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)
crescerem espantosos 940%. A Ritalina, também chamada de "droga da obediência", é
receitada às crianças hiperativas . De cada três crianças diagnosticadas com TDAH, duas não têm o transtorno, avalia Costa e Silva:
- Muitas vezes uma criança desatenta vive mal em casa, ou há um excesso de ansiedade,
ou é apenas mais levada que as demais. Estabelecer critérios que digam o que é doença e
o que é normal é muito difícil.
Outra dificuldade, para ele, é a pressão sobre os médicos:
- Canso de ver clientes que sabem mais sobre as últimas novidades do que eu. Leram
tudo na internet, jornais, revistas. Hoje o público é mais informado, então a pressão é
muito maior. E, também, há o marketing crescente das indústrias, que sabem muito bem
dar novos nomes para velhas doenças com intuito de vender novos remédios.
Ciro Mortella, presidente executivo da Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica
(Febrafarma), diz que não há exagero no comportamento da indústria:
- As ações promocionais têm a finalidade de in- 1 formar os médicos sobre as
competências científicas e tecnológicas dos laboratórios, as características de seus
produtos e o lançamento de novos medicamentos. Na prática diária, a troca de
informações entre laboratórios e médicos é legítima, necessária e útil para os profissionais
e seus pacientes.
Uma discussão sobre conseqüências de ações promocionais agressivas deve levar em
conta o estouro de vendas de certos remédios. Essa é uma questão que não traz
respostas simples. Veja este exemplo: o Brasil está entre os maiores consumidores de
medicamento para disfunção erétil do mundo.
De acordo com a IMS Health, uma auditoria que mede as vendas da indústria
farmacêutica, em janeiro deste ano, o Cialis foi o medicamento mais vendido no País.
Suas vendas totalizaram 5,68 milhões de dólares. Em segundo lugar veio o analgésico
Dorflex (com 5,55 milhões) e, logo a seguir, o Viagra - também para disfunção erétil -
com total de 5,54 milhões de dólares.
De volta à "droga da obediência" para crianças, Fábio Barbirato, chefe da psiquiatria infantil
da Santa Casa do Rio de Janeiro, reconhece a complexidade da questão e defende a
desmistificação do TDAH:
- Nesse caso, o número de crianças que tomam Ritalina no Brasil não é por si só
alarmante. O problema é que existe um superdiagnóstico, feito por pessoas mal treinadas.
A psiquiatria da Santa Casa do Rio de Janeiro tem um programa de capacitação para
professores de escolas públicas e privadas, em todo o País. O objetivo é ensiná-los a lidar
com a criança hiperativa para que, nas palavras de Barbirato, "talvez não tenham de
tomar remédio".
Ainda no campo da psiquiatria, é interessante falar sobre o abuso dos tranqüilizantes, ou
remédios para dormir: os benzodiazepíni caso esses são os , medicamentos mais usados
na psiquiatria (como o Diazepam, Lorax, Lexotan, Dormonid e o dezenas de outros).
Não é de hoje que as questões psiquiátricas têm grande apelo de mídia. De acordo com
Márcio Bernik, psiquiatra coordenador do Ambulatório de Ansiedade do Hospital das
Clínicas de São Paulo, essa é uma das razões que explicam "um certo uso excessivo dos
tranqüilizantes". Pesquisas nos EUA e na Europa indicam que metade das pessoas com
problemas psiquiátricos não procura tratamento. Paradoxalmente, explica Bernik, há uma
grande parcela da população que não teria necessidade de usar remédios:
- No Brasil, 10% da população usa tranqüilizantes benzodiazepínicos diariamente. Muitas
dessas pessoas tiveram um problema transitório, foram a um médico e receberam a
prescrição. A maioria continua tomando muito tempo depois de não precisar mais. E os
médicos, continuam a receitar. É um mau pacto entre médico e paciente. O médico acha
que a pessoa não fica bem sem o remédio, ou não tem conhecimento correto, ou tentou
fazê-lo parar e não conseguiu.
Os benzodiazepínicos não causam dependência física, porém, ao parar de tomá-la, o
paciente sofre sintomas de abstinência (insônia, taquicardia, tonturas, inquietude mental)
parecidos com os que o levaram a procurar o médico da primeira vez. "Isso confunde a
pessoa, mas esses sintomas parariam em poucos dias", esclarece Bernik, que finaliza:
"Em última instância, é sempre um pacto entre médico e paciente. A auto-medicação é
bem mais rara, não é como com os antibióticos".
O mau uso, ou uso excessivo, de antibióticos é capítulo fundamental na discussão da
relação do homem com os remédios. Muitos são prescritos por não-médicos: amigos,
balconistas de farmácia e familiares, além da auto-medicação. Isso acontece muito
porque apesar da faixa vermelha na embalagem, não há controle sobre as venda. nas
farmácias brasileiras.
Uma das principais conseqüências de uso de antibióticos é a indução à resis tência
bacteriana. "No Brasil há grande incidência de bactérias resistentes", alerta a infectologista
Maria Beatriz Souza Dias, responsável pelo Controle de Infecções do Hospital Sírio-
Libanês, em São Paulo, e integrante do grupo de Controle de Infecções do Hospital das
Clínicas:
- Temos um porcentual muito alto de Stathylococcus aureus (bactéria que provoca
furúnculos, pneumonia e infecção sanguínea, óssea e articular) resistente a
antimicrobianos, principalmente em hospitais, mas já aparecendo em peso soas não
hospitalizadas. Também temos uma das maiores experiências mundiais com
Acynetobacter e Pseudomonas, bactérias resistentes a todos os antibióticos, exceto às
polimixinas, um grupo de antimicrobianos muito antigo e tóxico.
Em relação a outros países, o uso de antibióticos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs)
brasileiras chega a ser dez vezes maior, diz a médica. Outro exemplo de uso exagerado
acontece em cirurgias: muitos pacientes recebem antibióticos preventivos sem
necessidade e por tempo prolongado, mesmo após a alta.
Entre outros fatores, isto acontece, explica Maria Beatriz, porque muitos médicos têm
uma formação antiga em relação aos antibióticos. Ensinava-se que tomá-las por menos
de uma semana era perigoso. "Hoje, já se sabe que, quanto mais prolongado o uso,
maior o risco de induzir a resistência bacteriana: afirma a doutora.
Outro problema relevante é o custo do combate às bactérias mais resistentes e fungos.
Na suspeita de uma infecção por esses agentes, a combinação de drogas em geral
utilizadas custa cerca de 700 reais por dia. Já os medicamentos antifúngicos podem
custar desde 10 reais até quase 5 mil reais por dia de tratamento.
O alto custo de tratar fungos e bactérias resistentes também pode ser comparado aos
custos, igualmente altos, dos tratamentos para pacientes com câncer em estágio
avançado.
Aí também existe outra zona nebulosa e delicada da relação entre médico e, em caso de
câncer avançado, os familiares do paciente. Quem fala a respeito é Ricardo Marques,
oncologista clínico do Centro de Oncologia do Hospital SírioLibanês. Ao ser questionado
sobre se há ou não um problema de mau receitamento, ou uso abusivo de medicamentos
para pacientes com câncer, ele avalia:
- Não acredito em problemas técnicos de mau receitamento. O problema é emocional, e
acontece quando se chega a um ponto em que a quimioterapia não funciona mais. Isso é
muito difícil para o médico e para a família, aí começa o abuso. São acordos emocionais
entre médicos e pacientes. A família tende a esperar algum milagre.
Marques diz que esse é um problema sobretudo brasileiro:
- Nos países mais desenvolvidos há um ambiente amplo de pesquisas para novos
remédios. Aqui, só nos restam as drogas já consagradas. O oncologista brasileiro é muito
flexível em seus conceitos, então, na vontade de ajudar, embarca em tentativas como,
por exemplo, dar remédio para câncer de pulmão em quem tem câncer de intestino. É
muito comum, também, em oncologia, idiotizar o paciente, não o informar que ele tem
câncer, por exemplo, ou não mencionar a gravidade.
A família Andrade. de Araçatuba (no interior de São Paulo), vive um drama que pode ser
encaixado na descrição de Marques. Há exatamente um ano, Carlos, de 63 anos, pai de
Mariana Franzon Andrade, foi diagnosticado com câncer no cólon.
Passou por uma cirurgia, na qual se descobriu metástase (outros focos de tumor). Tanto
o cirurgião quanto um clínico geral, amigo da família, avaliaram que o caso era terminal.
Deram a Carlos de dois a cinco meses de vida. Mariana diz como a família recebeu a
notícia:
- Minha mãe não aceitou. Disse que faríamos tudo para salvá-la. No início, resolvemos
não contar para o meu pai a gravidade do problema. Eu nunca me imaginei fazendo isso,
mas fizemos para protegê-lo, para evitar que perdesse as forças para lutar contra a
doença.
Dali em diante, a família Andrade começou uma busca sem tréguas. O primeiro passo foi
procurar uma médica que fosse favorável a insistir com a quimioterapia. Carlos foi
submetido a dez sessões, com relativo sucesso. Em novembro do ano passado, a família
o levou até Campinas (no interior paulista) para tomar doses de Avastin, medicamento
que inibe os vasos sanguíneos que alimentam o tumor, há apenas dois anos no mercado.
A dose de Avastin custa cerca de 6 mil reais e é quinzenal. Sem condições de custear o
tratamento, os Andrade entraram com mandado de segurança contra a Secretaria de
Saúde do Estado e ganharam, na Justiça, o direito ao remédio. "Meu pai está muito
melhor. Não tem mais anemia", comemora Mariana.
Não foi só. Em peregrinação constante, a família foi até Birigüi (também no interior
paulista) a fim conhecer a empresa que fabrica o medicamento Imunolon, ainda em fase
de testes, que agiria fortalecendo o sistema imunológico. "Lá, nos disseram que não havia
risco nem contra-indicações, então topamos experimentar", diz Mariana. "A médica foi
um pouco reticente, mas acabou aceitando. Se não aceitasse, continuaríamos com ela,
mas ele tomaria mesmo assim", declara.
Não é exagero dizer que a família está à procura de um milagre. Com ou sem
consentimento médico, irão atrás de qualquer sinal de uma possível cura:
- Procuramos muita coisa. Vi, na internet, que chá de folha de graviola é bom contra o
câncer, ele está tomando. Também toma extrato de própolis verde e chá verde. Come
shiitake, soja, fibras e muito tomate - enumera a filha.
Com um ano desde o diagnóstico, Carlos já superou três vezes o prazo inicial de
sobrevida. Ele mudou, emagreceu, perdeu cabelo e passa o dia todo na cama, exausto.
Mas está vivo, e é isso que a família quer:
- É até engraçado... Se dependesse dele, já teria morrido. Ele não escolhe nada, reclama
de tudo, mas toma. E nós vamos continuar, porque alguma coisa está fazendo efeito.
Como se vê nesse último exemplo e nos demais casos citados nesta reportagem, a
discussão, que envolve aspectos legais, mercadológicos, culturais e psicológicos, entre
outros, é complexa.
Se em alguns casos há evidentes falhas na fiscalização e na conduta médica, em outros,
as respostas e o melhor caminho a seguir nem sempre são evidentes ou fáceis.
*O Brasil é segundo maior consumidor mundial de ritalina, a chamada "droga da obediência"
FONTE: ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria
sábado, 13 de novembro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
0 comentários:
Postar um comentário